terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Retrogradação

 



Depois da conversa ao almoço com os mais novos sobre o chatgpt, resolvi aliviar a minha resistência a esses modernismos, e encetar uma conversa com o dito. Num segundo alinhavou um manual que me demora semanas a elaborar consultando livros, sublinhando, resumindo, e ainda, apresentou uma proposta de promoção do evento muito mais apelativa do que eu faria. Agradeci. Retribuiu o agradecimento e desejou muito sucesso na minha empreitada.

Fiquei pasmada... o facilitismo pode tornar-se viciante. Desliguei o dito e voltei para os meus sublinhados, os meus apontamentos. 

Assumo a minha retrogradação.





sábado, 11 de janeiro de 2025

vermelho

 





assim que pôs o pé no meio dia do dia 31 parou de trabalhar. havia de servir para alguma coisa aquele modo de ganhar ou desganhar a vida sem direito a subsídios de férias e de natal. que fosse ao menos para parar de trabalhar quando lhe desse na gana. 

se em tempos tinha medo de que os clientes não achassem piada àquelas súbitas interrupções, serviu-lhe um braço partido para lhe mostrar que não. que eles esperam.

andou para aí a dar água sem caneco convencida de que o universo proviria com tudo o que precisasse. e proveu. não passou carência. dá-lhe vontade de arrastar a situação para ver até quando tudo se alinhará para que possa viver como quer, daquilo que quer. mas o saldo bancário está de uma cor que só fica bem no chakra da raiz ou num pôr-do-sol bem carregado. e voltou.





sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

dos anos

 




das armadilhas dos anos que passam, parece que difícil é manter o sorriso. ironicamente os músculos afrouxam no rosto e os cantos dos lábios tombam em modo de desagrado. será, talvez, o corpo a contradizer a alma que se vê sempre criança, sempre jovem, sempre dançante e leve.





quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Lista

 



Aparece-me, por acaso, no meio das sebentas que procuro organizar, a lista dos objectivos para o ano de 2024. Noto que está uma considerável percentagem de alineas por realizar. Dobro a folha, peço que me desculpe, encosto os lábios em jeito de beijo, e deito na lareira onde várias achas de madeira ardem.

Faço outra. Leio. Quem cum diabo faria tal lista... murmuro para mim mesma. Se não me ponho a toques, não tardará muito e não tenho sobre o que conversar, nem com quem. 






domingo, 29 de dezembro de 2024

da horta

 





colhi os olhos de quase todas pencas para o jantar de consoada. deixei ainda umas quantas folhas de fora para que as lesmas e os caracóis continuassem a refastelar-se com os pobres dos vegetais. ao fundo, os tremoços começam a romper a terra e os espinafres revoltam-se por ter arrancado as ervas ditas daninhas que os aconchegavam. 

os corações parecem rendas de bilros de tão habilidosamente terem sido devorados pelos rasteiros, mas os brócolos não conseguem disfarçar a falta de atenção e cuidado ao seu redor.

a alfazema rebelou-se. estica os ramos contra todas as regras da horta comunitária, assim como o alecrim, numa provocação em atingir o céu.

os espargos hibernaram ou foram roídos pelos ratos.

o sr. carlos lamenta que os talhões dele não dão lucro, e eu animo-o, fazendo-o ver que o lucro que nos dá é o bem que nos faz.





segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

2 dias

 




diz a tia, que conta a bonita idade de 92 anos e uma vida que se poderia dizer bem vivida, tendo viajado pelo mundo todo, sempre instalada nos melhores quartos dos melhores hotéis - muito muito muito muito bom - como ela mesma qualificava... 

bem, como estava eu a contar ao forasteiro, diz a tia que a vida são dois dias e que temos que aproveitar tudo tudo tudo tudo.

sabendo que é um lugar comum, e mesmo assim, sendo expressão que eu rejeito e que até me provoca alguma urticária, fico a pensar como é que aqueles 92 anos vezes 365 dias podem ser resumidos a tão pouco.

aqui na minha pacatez, e arrisco dizer, simplicidade, sem que com isso me queira gabar, tenho a sensação de que a vida são todos os dias, estando cada um onde acredita que deve estar. e, mesmo nas agruras da vida, no automatismo das horas, na inevitável insatisfação que algumas obrigações acarretam, saber que se está onde se está, em amor. 






terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Do dia




Tu deves trabalhar mais do que os meus amigos...

Observa o rapaz

Mas fazes coisas mais bonitas e que as pessoas gostam

Diz ele analisando o que tenho em mãos 

Trabalhar mais não é lá grande elogio, fico eu a pensar com os meus botões. Trabalhar significa que não tenho forma mais inteligente de me autonomizar. Tivesse eu engenho suficiente para levar a vida sem essas ocupações...




 

domingo, 15 de dezembro de 2024

Tolhida

 



Hoje acordei pouco flexível. Quase que poderia dizer, zangada.

Está frio. Acho que nunca senti tanto frio. A não ser naquela casa de madeira onde me costumava encontrar com o meu amado e onde aqueciamos num abraço tão apertado e longo, que os nossos corpos nus reflectiam calor sem necessidade de agasalho. Poderíamos ficar assim a vida toda, sem mais alimento, sem cãibras, sem frio.

Mas hoje acordei tolhida. A cama, em que os lençóis de algodão me refrescam no verão, agora são uma pista de gelo.

Levantei-me, obriguei-me a um sorriso ao espelho, e deambulei até à sala onde acendi uma vela e o pau santo com que me defumo para afastar resquícios de caminhos densos por onde a minha alma terá andado durante o sono. E pedi direcção, orientação, lucidez, sendo que lucidez pode ser algo igualmente frio, como o tempo.

Visto-me. Recuso o soutien. Já tenho apertos que cheguem. Pego no balde da compostagem e saio para a horta. Pode ser que os caracóis e as lesmas tenham morrido com o frio. Lamento, são criaturas como nós, mas também as pencas que espero que sobrevivam até ao jantar de consoada.







sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Sopa de letras

 



Sob o olhar reprovador do rapaz, encontro todas palavras da sopa de letras sem seguir a ordem da lista do quebra-cabeças, salvo seja, apenas assinalando-as à medida que as encontro, ao acaso, sem regra.

Ai ai... condena, observando ... não segues nenhum método. Não cumpres as regras...

Rindo, vou justificando que as regras são para se quebrar. Cá comigo, vou sentindo a vontade de alargar este desregrar.





quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Cascas

 




À medida que caminhava, ia soltando cascas, daquelas como a dos eucaliptos. Começava a soltar-se numa ponta e depois ia caindo por ela abaixo, descascando-se. 

Não era trabalho fácil. Largar o subtilmente imposto pela sociedade, pela religião, pela moral desenhada por interesses camuflados e pelos dedos apontados. Largar as máscaras, os muros e as entraves. Tudo o que condiciona e maquilha de algo aceitável aos olhos de alguns, de muitos alguns.

Mas ela lá ia, descascando-se, até que fique apenas ela, nua de conceitos e preconceitos. Apenas ela, e as suas genuínas intenções e emoções. Terra nua, fértil, livre, inofensiva. Aprendendo a respirar de forma diferente, e a ser.