segunda-feira, 6 de março de 2023

Do tempo




Quanto mais facilitada a vida, menos nos sobra o tempo... assim como uma maldição... Murmurava a mulher com nostalgia dos tempos em que se esperava..

Esperava-se pelas estações, esperava-se pelo correio, esperava-se pelo encontro, esperava-se pelo telefonema, e, enquanto se esperava o tempo alargava e tudo cabia em tudo. A refeição era cuidada, a fruta vinha na época, o rosto era olhado com demora, os pés acariciavam a areia e o corpo abençoava a água de encontro à pele, a seu tempo, as gentes reuniam-se dedicando-se palavras e olhares.



 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

4 cêntimos





Quando d. Fernanda tentou fazer uma doação de 10 euros para uma ONG e a aplicação lhe fez ver que tinha 4 cêntimos no banco, pensou 'e agora...?'
Gradualmente veio a desligar-se dos desconsertos da carne, da nostalgia dos desencontros, alcançando uma quase quase serenidade na vida que escolheu. Mas naquele momento, 4 cêntimos, e de repente a serenidade. ..
D. Fernanda arranja-se, sai para a rua e recomeça aquela vida que só ela sabe, onde os ideais andam de candeias às avessas com a realidade dos tempos.
Encontro-a na mesa do café onde todos se cumprimentam e ninguém se conhece, e ela ri-se, e no riso entrelaça palavras que me dizem o que agora relato ao forasteiro. E ela teima, ainda assim, na fé e nos desígnios divinos. O que dizer, forasteiro? Ela diz que tem saúde e gratidão por isso, mas eu nem sei, nem sei... 

 


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

a gabardina beije

 



a gabardina beije, a mala que salva vidas, larga, de couro castanho, o rápido passo curto que se alenta quando a vê ao longe, e pára. 

a mulher que lavava futuros continua na sua direcção. afinal de contas tinha pedido àqueles com quem falava e não via que lhe pusessem no caminho o caminho. e o jardineiro de pessoas ali. aquele a quem chamava na intimidade do seu ser de 'o meu amor bonito'. bonito porque a fizera ser quem sempre tivera medo de ser - se é que o forasteiro entende.

então ali, naquele lugar onde o protagonista seria atingido pelo tiro certeiro do atirador, trocaram abraços e tocaram-se os lábios. as mãos nas mãos. o mundo todo ao contrário. tudo sem poder ser o que estava a ser. tudo a ser o que não queria que voltasse a ser. e tudo a ser.

depois, os dedos sobre os lábios para que não arrefecesse o morno dos dele. os braços vazios, cheios do abraço dele. e o cabelo, a maciez do cabelo dele, plasmada na palma da mão dela.

era vê-los, forasteiro, como se não se tivessem passado anos a cimentar todas as distâncias, excepto a distância.




domingo, 8 de janeiro de 2023

sobre ela



O que eu aprendo com ela, forasteiro? ah... como se o forasteiro já não soubesse mesmo antes de eu falar...
Aprendo a lentidão...
Aprendo a compaixão pelo insano. 
Aprendo a ouvir quem apenas precisa de ser ouvido.
Aprendo a atenção ao outro e a palavra que motiva, que dispersa a tristeza, que alegra, que lava, que dá vida.
Um da, ouvi dizer a um sábio que Deus criou a vida ao pousar a sua atenção. Assim é com ela. Ela tem o dom de dar vida. 
E escrevo enquanto a observo ouvindo atentamente a mulher, e é vê-la a ganhar vida, o corpo a endireitar-se, o rosto a tomar brilho, só porque aquela mulher interrompeu o seu andar e pousou a sua atenção, nela, sem pressa.





sábado, 19 de novembro de 2022

já nem sei dizer quando

 



eu não lhe sei dizer quando esqueci o meu corpo. foi assim como o passar do tempo, que não sentimos, que se nos escapa... eu esqueci o meu corpo debaixo das roupas, debaixo dos panos, debaixo do olhar, debaixo da atenção, debaixo dos dias, debaixo das tarefas, a encorrilhar-se solitariamente. assim como um marido deixa de ver a mulher a quem jurou amar.

também não lhe sei dizer, forasteiro, quando me tornei a lembrar dele, e retirei as roupas, e prestei atenção às pregas, à carne a ameaçar mais cansaço que frescura. e então deslizei a mão pela sua ondulação, e hidratei-o, perfumei-o, abençoei-o, e refiz as promessas que sempre adiei.





domingo, 16 de outubro de 2022

infusão

 




minha querida camomila...

murmuro, enquanto encosto os lábios ao pequeno pacote onde estão as flores secas que vou mergulhar em água quente. peço-lhe que me aconchegue, que me embale, que me acalme.

e acalma

a minha querida camomila vale-me nas maleitas de corpo e de nervoso, nos burburinhos da pele provocados pela inquietação do sentir que não é da carne, mas de algo mais lato, que desafia todas fronteiras, todos horários, todos limites.

minha querida camomila... 







e a chuva que não vem

 




a mulher no sonho chegava depois do tempo passar. ao chegar ao mar, a maré tinha-se feito alta com as ondas a espumarem na areia, ironizando a saudade da pele que anseia por água impelida por Poseidon.

quem empurra a água do mar? de onde nasce a força do vento?

questionava-se a mulher a quem escapavam as vontades. e a vida aos tropeções no suceder dos dias.

quem dá corda ao carrossel do tempo... que força é essa que tudo impulsiona

a vida é movimento, dizia o jardineiro de pessoas que enxertava esperança em corpos falidos. 

e é. mas o chão corre mais rápido do que a passada da gente.







segunda-feira, 10 de outubro de 2022

talvez

 




de tanto deixar de pensar no tempo, perdi a noção dele. escrevo numa sala vazia e ouço o som dos dedos nas teclas do computador, a máquina da loiça a trabalhar na cozinha e, um motor ou outro que roncam na rua. não sei que horas são, o que terei que fazer quando acordar, quantos dias faltam para repor a conta bancária. não vejo televisão, não ouço notícias, nem me apaixono. os dias correm, porque adormeço e acordo e pelo meio faço coisas e há outras coisas que gostaria de fazer, também. 

mas, com este estar a não saber do tempo, esta forma de não lhe dar importância, talvez possa fintá-lo numa curva, numa esquina, esgueirar-me quando ele vem do nada e parece que de repente envelhecemos, e aí, não envelhecer.





quarta-feira, 5 de outubro de 2022

do dia

 



hoje a minha espiritualidade é esta: 

uma fatia de bolo de chocolate húmido ainda morno, coberto com fondant de chocolate e frutos vermelhos, acompanhado por um bom espumante fresco, fresquíssimo. sozinha, como a prática impõe. e agradeço. agradeço a oportunidade de viver.

mais logo, quando me for deitar e perguntar se hoje melhorei o dia de alguém, poderei dizer que sim, o meu, no fim de contas.

e das bênçãos do dia, este tanto. muito obrigada senhor das tempestades. mas, por favor, manda mais aqui para o talhão nr 22.





quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Parabéns!





Parabéns a Ela, com quem crescemos pelas palavras que escreve, que acrescenta estrada aos nossos pés com os caminhos que trilha, que nos humaniza com a sua forma de ser, que nos alarga o horizonte com a amplitude do seu olhar.

Parabéns, CC, e muito obrigada por ter a porta aberta.