domingo, 29 de setembro de 2024

pirilampizar

 



O homem sisudo de olhar distante devolveu a magia à mulher enevoada nas margens do rio. Longinquo, do outro lado do mundo, pirilampizou-se. 

E todos conhecem o efeito de um pirilampo por entre o nevoeiro nocturno - desperta os acasos como um estalar de dedos.

E depois é um livro que se abre, é uma pena que se encontra, é o que se vê de olhos fechados, é o emaranhado, aquela erva daninha que se parece com gramínea de cada vez que se fecha os olhos. É pirilampizar.





quarta-feira, 18 de setembro de 2024

sol

 




olho o sol vermelho, ainda alto, solitário, num céu sem céu, sem cor, sem vida. 

tantas vezes o vi assim fulgurante mergulhando lentamente no horizonte, tornando o azul, magenta, e anunciando a noite, o descanso, o sonho, com sorte a poesia.

mas hoje, estavam sol e céu desalmados, descoraçados, entristecidos, sem  poesia que daí nasça, apenas o pensamento à toa, sem pouso, sem repouso.









 

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

falta

 




ponho de lado os compêndios, os manuais, o estudo, os marcadores que assinalam as matérias a reler, as páginas por escrever e os gatafunhos alinhavados. olho à minha volta para os livros espalhados, no sofá, no chão, na mesa de apoio. não há espaço que chegue para tanta teoria.

e detenho-me a ler poesia.

e surpreendo-me ao perceber a falta que me faz.





domingo, 8 de setembro de 2024

uma das maravilhas da vida

 




muitas vezes, durante as rotinas corriqueiras dos meus dias, recordo aquelas visitas no hospital, em que o estar perto me tranquilizava.

sr. dr., agora temos que ir... 

dizia eu em forma de despedida

ah... não se preocupe, vá descansada. entre nós nunca houve distância. nunca houve nem haverá...

respondeu, naquela entoação tão própria, tão delicada, tão segura.

e noutras vezes eu tentava que ele se alimentasse, que fizesse um esforço, que se fortalecesse

sabe - dizia-lhe eu - tem que fazer um esforço, fortalecer para sair daqui, ir para sua casa, retomar a vida normal

mas sabe - respondia - já não tem interesse para mim. fortalecer não vale a pena, a vida normal não me interessa

mas como não interessa? - tentava eu - cada dia é uma novidade, cada novo dia é uma nova oportunidade, tanta coisa boa pode acontecer...

tem razão - reflectindo, concordava. e naquele modo de falar pausado, emoldurando as palavras com gestos lentos - essa é uma das maravilhas da vida, mas já não me interessa... agora estou cansado...

fechando os olhos, repousava. e eu calava-me, respeitando os cansaços, a dignidade e a serenidade.

nunca haverá distância, sr. dr., ambos sabemos que não. 






sábado, 7 de setembro de 2024

nortada

 



do verão, trago a maciez morna da areia, a bênção, que só eu sei e sinto, da água fria pelo corpo todo, o mergulho, a memória e a gratidão por isso, e o vento, o arrepio do vento norte, a rendição e o apaziguamento da pele. a nortada em mim.






terça-feira, 13 de agosto de 2024

Rede

 



A mãe anciã remendava-me a rede dourada que compunha a minha aura, com flores coloridas, tecidas no entrelaçar da malha, aqui e ali, por todo. Envolta na sua dedicação, eu revigorava.
Trago a imagem comigo como se de um manto se tratasse e, nos meus momentos mais frágeis cubro-me com a teia de ouro e flores. E amor.





domingo, 12 de maio de 2024

O gavião que saltitava










Que ventania é esta que faz esvoaçar os dias como a um livro deixado por descuido num banco de jardim?
O gavião saltitava...
E o calendário corria.
De tanto voar contra as marés de Éolo, tentando recuperar o que o tempo levou, a ave perdeu as asas. O senhor dos ares não tolerou a determinação de um ser movido pela vontade de atalhar nortadas com a esperança de trocar a volta aos dias. Voando em contrariedade, conseguiria, pensava ele, alcançar o que a vida lhe roubara... a amada, os pais, os sonhos, os pedaços todos que compunham o seu pequeno coração.
E o gavião saltitava...
Saltitava e tremelicava. Tantos eram os perigos daquela vida rasteira para quem estava habituado a olhar tudo do alto, com a distância dos deuses.
E de saltito em saltito, foi aprendendo a ver aquilo que considerava insignificância lá de cima, de cima das alturas, de cima do seu orgulho. E quando a gente aprende a ver, a gente aprende também a sentir, e quando a gente aprende a sentir, a gente aprende também a falar, e quando a gente percebe que ao falar se pode curar, a gente aprende a ser amor. E de aprendendo em aprendendo, as asas começaram a renascer nos tocos atraiçoados do gavião, e ao renascerem as asas, das penas se refizeram os sonhos, e a vida deixou de ser de trás para a frente, corrida em busca do passado, e então tudo se presenteou.
E o gavião que saltitava, que nem de voos rasos voava, novas asas ganhou, à custa do que se negava, e que caminhando aceitou.






quinta-feira, 25 de abril de 2024

Podia chamar lhe liberdade

 


Nao, isto não é um exercício de escrita. É uma negociação com aquilo que tolhe a vida de uma pessoa.
Um medo por dia. Propôs-se escrever um medo por dia, descreve-lo, negociar com ele, apazigua-lo, faze-lo seu aliado. Claro que para isso precisaria de aprender a sua linguagem,  decifrar as suas manhas, reconhecer os seus disfarces, a forma como incorporava nela mascarado de protecção. Sentir-lhe o cheiro.
Já sentiu o cheiro do medo? Ela já.  Aquele fedor putrefacto a morte.
E um dia vem como conforto, o ninho onde se recolhe, onde nem a si mesma encara.
E um dia vem como o certo, o permanente, o não vá o diabo tecê-las, e fica naquele tédio morno sem ondas, sem riscos, sem sal.
E um dia vem como saúde e há que salvaguardá-la, e não esforça o coração,  e não sobrecarrega a visicula, tem cautela com os intestinos,  tem cuidado com as tensões,  e fica a canjas e peixe cozido.
E um dia vem como serenidade,  e recusa a paixão,  desacredita do amor, recusa os turbilhões.

O que lhe quero dizer, forasteiro, é que tenho perdido muitos pores de sol. 




terça-feira, 23 de abril de 2024

Contágio

 




O homem distanciava-se, curvado sobre a cadeira de rodas em que empurrava o companheiro. Partilhavam o mesmo sorriso ténue e aquele brilho no olhar. O que empurrava, grato pela oportunidade de poder fazer a vida de alguém melhor, o que era empurrado grato por ter a humildade de aceitar. Posso dizer que enquanto passavam transbordavam a Alegria que dura, e só por os ver passar, o ar ficava mais límpido, as pessoas mais leves, as aves pousavam e o vento brindava com um sopro manso. Reconheciam o verdadeiro valor de se Ser. E contagiavam, só por passarem.




sábado, 30 de março de 2024

Paredes

 



Conto-lhe, forasteiro, descobri em mim jeito para espetar pregos nas paredes. Anos a poupá-las à minha desaptidão e tendência para escavacar, fui encontrá-las rachadas na mesma, pelo tempo, pelo desgaste. E sabe que elas se riram de mim?... gargalharam até... poupei-as privando-me de quadros, e elas a desenharem rasgos no desaparecer dos dias.

Agora, é só ver-me de martelo numa mão e pregos na outra.