do dia, ficou o homem que garante que quando reconhecemos o divino em nós, não há lugar para o medo; a comida na mesa e a paz; o sentido de humor e a leveza; o tecto.
coisa de pouco glamour, forasteiro.
"escrevo para me ver livre de mim" clarice lispector
do dia, ficou o homem que garante que quando reconhecemos o divino em nós, não há lugar para o medo; a comida na mesa e a paz; o sentido de humor e a leveza; o tecto.
coisa de pouco glamour, forasteiro.
do dia, ficou o erro, depois de todo o cuidado, o erro mesmo assim, e o medo de um erro de novo. então, silencio e pergunto, se o erro veio para me afastar de algum caminho ainda mais errado.
do dia, trago a sala de espera em que as pessoas se entreolham e a médica que se despede da doente com um braço nos seus ombros, um braço em modo de abraço.
do dia trago as horas desenroladas e este texto que esteve para não ser.
Do dia, adorno o meu peito com a fragilidade do corpo, o calor fora de horas, a mulher que se sobrevive, os abraços inesperados, a saturação do trabalho, as flores e o descanso.
Ao dia, ofereço a esperança.
Do dia, tenho para entregar: o aroma a bolachas pela manhã, o sol paterno na pele, a calma que vem da terra, o chilreio do pássaro inquieto, o repouso, o almoço longo e presente, o cheiro de roupa lavada, a casa por arrumar, o direito ao descanso, o longe que se fez perto, as missangas que se entrelaçam na linha, a história que se repete, as palavras que não se dizem e falam.
A gratidão que se tatua na memória.
do dia, trago-lhe numa bandeja: a humidade da terra, o aroma do limonete e da erva príncipe, a concha a semente e a lágrima, a lembrança das raras uvas sem grainha recebidas num cesto de verga e cultivadas pelo meu avô.
e a saudade, a doce e mansa saudade.
corto cuidadosamente as pequenas bolachas de avelã que estiveram algumas horas no frigorífico a ganhar consistência suficiente para resistirem à pressão da faca.
é sinal de que o Natal se aproxima.
bolachas de Natal? pergunta uma voz nas minhas costas
respondo que sim.
mas são muito mais do que bolachas. são gerações atrás de mim, são Natais em alegria, são família, são tradição, é o meu querido avô que tão desajeitadamente demonstrava um carinho que ninguém percebia, nem percebe.
mas digo-lhe, forasteiro, que não me admirava que ele estivesse aqui, enquanto escrevo estas palavras envoltas no aroma da avelã tostada.
Olha...
disse ela, puxando-o pela mão e apontando para o céu
Olha... vê este azul... este azul improvável...
Enquanto, de braços abertos, rodopiava de alegria, o forasteiro olhava para o céu.
Olha... vê o contraste com as nuvens gordas, brancas e cinzentas... e o azul... este azul tão bonito que apetece sorver...
e vê o verde... repara no verde banhado de sol! que maravilha...
E continuava a rodopiar enquanto o outro, calado, ia seguindo com o olhar cada 'olha' iluminado de espanto.
Olha só... é domingo e tudo se conjuga como um presente enfeitado! que sorte a nossa estarmos aqui neste planeta plantado em tanto azul...
murmurava agora mergulhada em memórias onde as cores não brilhavam. e ria...
O homem sisudo de olhar distante devolveu a magia à mulher enevoada nas margens do rio. Longinquo, do outro lado do mundo, pirilampizou-se.
E todos conhecem o efeito de um pirilampo por entre o nevoeiro nocturno - desperta os acasos como um estalar de dedos.
E depois é um livro que se abre, é uma pena que se encontra, é o que se vê de olhos fechados, é o emaranhado, aquela erva daninha que se parece com gramínea de cada vez que se fecha os olhos. É pirilampizar.
olho o sol vermelho, ainda alto, solitário, num céu sem céu, sem cor, sem vida.
tantas vezes o vi assim fulgurante mergulhando lentamente no horizonte, tornando o azul, magenta, e anunciando a noite, o descanso, o sonho, com sorte a poesia.
mas hoje, estavam sol e céu desalmados, descoraçados, entristecidos, sem poesia que daí nasça, apenas o pensamento à toa, sem pouso, sem repouso.
ponho de lado os compêndios, os manuais, o estudo, os marcadores que assinalam as matérias a reler, as páginas por escrever e os gatafunhos alinhavados. olho à minha volta para os livros espalhados, no sofá, no chão, na mesa de apoio. não há espaço que chegue para tanta teoria.
e detenho-me a ler poesia.
e surpreendo-me ao perceber a falta que me faz.