segunda-feira, 3 de junho de 2019

conto-vos eu que assisti









a mulher que parecia feliz, tinha feito um longo caminho na aprendizagem do sentir. era notória, para quem usava os sentidos que não constam da cartilha da escola, a sua incapacidade, trazendo todas as emoções encouraçadas, as intuições enjauladas, os arrepios anestesiados e as borboletas na barriga domesticadas.
fez então a mulher aquele penoso percurso de deixar cair defesas, colocar os pés em terrenos baldios, arriscar a vertigem dos declives, ajustar-se à ondulação, e permitir-se ser corpo que sente e pele que se arrepia.
para isso, teve a mulher que dar asas ao coração. e deu. não só lhe deu asas, como deu autoridade para avaliar, para acreditar, para decidir, para escolher. e era feliz, da felicidade das crianças que confiam.

no entanto, na falta de entendimento para compreender o desnorteio daquele, que dizendo que a amava, penava com ciúmes e insegurança, resolveu ser ele por dentro e pensar com a cabeça dele. para isso, silenciou o seu coração.

quando a cabeça tomou o lugar do coração, a mulher escureceu toda ela. na verdade, havia razões lógicas para a insegurança e descrença, e o modo de pensar que agora tinha, enumerava-as e demonstrava-as sem dificuldade. e a mulher escurecia mais. e o coração calado, amordaçado, emudecido, imobilizado. 

diz que foi enquanto subia a rampa da garagem que um anjo soprou-lhe no ouvido que pusesse a cabeça no seu lugar, e que deixasse o coração voltar a pensar e a decidir e a rir só porque sim, só porque sente, só porque acredita, só porque tem fé. então o peso da mulher aligeirou, e até o mar mudou para uma cor esmeralda quando ela lhe sorriu ao contar que tinha voltado a si.

serviu-lhe a experiência, contou-lhe o anjo, para se colocar no lugar do outro, e respeitar a sua angústia. e ela, respeitou o tormento de viver ao sabor de uma cabeça que pensa e com um coração reduzido a bombear sangue. pobre criatura.








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