sexta-feira, 14 de abril de 2017

o meu Amarante era Gorbi e tinha olhos cor de laranja












fui buscá-lo à Serra da Estrela depois do funeral. gostávamos de serras da estrela, do seu espírito livre, selvagem e terno. mas ele resolveu encurtar o tempo de vida que lhe tinha sido oferecido, e, depois de o enterrar, meti-me no meu fiat seiscentos e fui buscá-lo à serra. era uma forma de o manter vivo, e a mim também.

hoje venho aqui contar sobre ele porque a Teresa e a Susana lembraram-me que nunca o tinha feito.

trouxe-o numa caixa de cartão, do canil de são lourenço. nasceu a 13 de maio, tinha um nome qualquer que começava por 'e', que eu mudei para Gorbi, e tinha lop. eu dizia que ele era brasonado.
mas o gorbi era selvagem. naqueles seus olhos cor de laranja cabia a liberdade toda do mundo, e a ternura, e a firmeza.
foram escusados os muros, os portões, as cordas, a disciplina. sim, porque ele esteve a tirar um curso de obediência cega na gnr e a ordem que melhor aprendeu foi 'destroça', e ele corria a bom correr até se perder de vista. 
era raro o dia que não ia à praia. aparecia em casa a cheirar a algas e com o focinho arranhado. outras vezes desaparecia durante dias e eu percorria campos e ruas e acampamentos ciganos, em vão, para mais tarde ele aparecer em casa, exausto e com cordas esfarrapadas amarradas ao pescoço. diziam que o viam a esperar que o semáforo mudasse para verde para atravessar as ruas.
o gorbi tinha, diziam os veterinários, uma otite crónica, e quando abanava a cabeça para sacudir a dor, ficava com as orelhas inchadas e tinha que ser lancetado. com a idade a doença agravou e ele deixou de sair de casa. os antibióticos eram cada vez mais frequentes e os anti~inflamatórios também. tinha-me dado jeito conhecer a Teresa naquela altura, e sorrio enquanto escrevo isto. deixei de partir de férias para cuidar dele. e ele sabia. fazia sopas que o ajudava a comer como se fosse uma criança e repousava a sua cabeça no meu colo. fiquei sempre com a culpa de não o ter tratado melhor, de ter demasiadas vezes tentado atenuar a sua dor com medicamentos.
um dia, e nessa altura eu vivia realmente numa casa de campo, tinha-o deixado a descansar por baixo dos pinheiros, e estava eu na cozinha a preparar o almoço, quando senti a brisa que ele provocava quando passava por mim. mas ele não estava, tinha passado para se despedir. fui encontrá-lo morto no mesmo sítio em que o tinha deixado, no meio dos pinheiros. afaguei o seu pelo já sem brilho, peguei numa pá, abri um buraco e enterrei-o.
reparo agora que não chorei a sua morte. assim como não chorei a dos que me morrem e nunca morrem em mim.
















8 comentários:

  1. São lindos os Serra da Estrela. Gostei muito de conhecer esta tua história, ana (e adoro ler o que escreves, mas isso já não é novo para ti).
    A Teresa teve uma ótima ideia. :-)

    E mesmo quando eles nos morrem, podemos decidir mantê-los vivos em nós, ao menos essa liberdade temo-la. O Duque também não morreu em mim.

    Boa Páscoa, minha querida ana :-)

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    1. eu acho que nunca morrem. estão em cada cão com que nos cruzamos.
      boa Páscoa, Susana, que seja de ressurreição e renovação :)

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  2. a minha alma é um cão, de certeza que noutra vida fui um Gorbi :)

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    1. por isso, reconheço-te :)
      se és Gorbi, és o rei da paciência...acho que vou mudar-te o nome, Hury...

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    2. ehehehehehe, todos os nomes são teus

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  3. querida ana, não choraste mas eu chorei.

    tem uma boa Páscoa.

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    1. obrigada, Teresa.
      enquanto escrevia este texto também me vieram as lágrimas aos olhos.
      uma boa Páscoa para ti. que seja de renovação.

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  4. Tão bonito ana, fizeste-me lembrar do meu Perry de olhos meigos, um dia ainda falo sobre ele, dos poucos que chorei por me morrerem. Beijinhos ana

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