domingo, 12 de maio de 2024

O gavião que saltitava










Que ventania é esta que faz esvoaçar os dias como a um livro deixado por descuido num banco de jardim?
O gavião saltitava...
E o calendário corria.
De tanto voar contra as marés de Éolo, tentando recuperar o que o tempo levou, a ave perdeu as asas. O senhor dos ares não tolerou a determinação de um ser movido pela vontade de atalhar nortadas com a esperança de trocar a volta aos dias. Voando em contrariedade, conseguiria, pensava ele, alcançar o que a vida lhe roubara... a amada, os pais, os sonhos, os pedaços todos que compunham o seu pequeno coração.
E o gavião saltitava...
Saltitava e tremelicava. Tantos eram os perigos daquela vida rasteira para quem estava habituado a olhar tudo do alto, com a distância dos deuses.
E de saltito em saltito, foi aprendendo a ver aquilo que considerava insignificância lá de cima, de cima das alturas, de cima do seu orgulho. E quando a gente aprende a ver, a gente aprende também a sentir, e quando a gente aprende a sentir, a gente aprende também a falar, e quando a gente percebe que ao falar se pode curar, a gente aprende a ser amor. E de aprendendo em aprendendo, as asas começaram a renascer nos tocos atraiçoados do gavião, e ao renascerem as asas, das penas se refizeram os sonhos, e a vida deixou de ser de trás para a frente, corrida em busca do passado, e então tudo se presenteou.
E o gavião que saltitava, que nem de voos rasos voava, novas asas ganhou, à custa do que se negava, e que caminhando aceitou.






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