quarta-feira, 19 de junho de 2019

bolo de laranja húmido





deitei-me com dúvidas sobre mim mesma. não preguei olho toda a noite, refazendo dias, relembrando diálogos, interpretando olhares, revisitando gestos, analisando intenções.
ainda tentei pedir ajuda àquele que não me conhecendo, conhece-me melhor do que ninguém. mas ele não estava. só queria uma ponta, uma ponta de um cordel qualquer que me conduzisse até ao centro de quem eu sou. mas ele não estava. andaria por aí de esplanada em esplanada, esplanando-se.
mas o caminho para dentro de nós mesmos somos nós que o temos que fazer, essa é que é essa.

[diz-me tu
pedia eu ao homem-terra um dia destes
tu é que tens que o perceber. se eu te disser, não o sentes, e se não o sentires, não o percebes. o caminho é teu.
o homem-terra tinha razão, e tem, quando deixa que a sabedoria, aquela que tem cheiro a terra molhada e ao aroma das árvores trazido pelos ventos, tome voz nas palavras dele. aí, ele tem razão, quando é o xamã que fala nele]

assim que o dia despontou, lá pelas cinco e meia, levantei-me com dúvidas sobre as dúvidas que me tinham mantido acordada toda a noite, e comecei de imediato a fazer bolo de laranja. 
fazer bolos é uma forma de me sentir humana. mais nenhuma espécie faz bolos.
enquanto faço bolos, vou crescendo, mas crescendo mesmo por todos os lados. dos meus pés libertam-se raízes que me ancoram na terra fresca e húmida e fértil, pelos ingredientes que se passeiam nas minhas mãos, e, absorta na memória dos meus ancestrais, entro naquele plano habitado por quem já não tem corpo, e reproduzo aromas, sabores e texturas que confortaram tantas vidas. povoo de cheiro a bolo quente a minha casa e todas aquelas que antes da minha, foram invadidas pela mesma azáfama matinal. não sigo receitas. empresto mãos à intuição.
lentamente percebo que as dúvidas são obra do mafarrico, e regresso a mim, lentamente, ao centro de dentro, do peito.










10 comentários:

  1. Nunca "eu é mais bolos" fez tanto e perfeito sentido. ;)

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  2. (talvez não tenha nada a ver mas senti-me sincero para ter de escrever isto em baixo, não me leves a mal)
    Pensando neste e noutros textos teus, queria dizer-te para te não sentires perseguida só porque o nome ana aparece em alguns textos meus. tenho muitos motivos e carinhosos para escrever o nome ana: as minhas duas avós chamavam-se ana de jesus, a minha irmã chama-se Ana T, as minhas primeiras namoradas chamaram-se Ana M e Ana P, conheci uma ana de viana nos meus últimos tempos de universidade com quem abri o meu coração e ela me acarinhou e até admirou, conheci uma Ana K num dos meus últimos contratos de trabalho com quem falei de livros e música nos intervalos para almoço.

    Não enterres o teu perseguidor nem lhes lances os cães senão ele na sua vida seguinte virará padre e entre tu e deus ele escolherá deus e fará como o Eurico presbítero, morrerá na batalha por não se te poder dedicar.

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    1. ana é um nome comum. por isso gosto dele :)
      ora, Zê... eu não sei quem é esse...

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  3. eu adoro bolos! mas o de laranja é sem dúvida o meu favorito...

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    1. Húmido. Não é um bolo qualquer...

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    2. hum... nã conheço esse... será que podes partilhar a receita? :)

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    3. O peso dos ovos em açúcar, farinha e manteiga e sumo é raspa de uma laranja.
      Depois de cozido regas com sumo de laranja.
      É isto :)

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  4. Gosto de tudo o que envolva laranja, torta, pudim...e esse bolo apetece!
    Na minha família o pudim de laranja é tradição da noite de natal, tudo igual ao que Ana diz, tirando a farinha, apenas uma colher de chá. E apesar da moda dos sumos de tudo e mais alguma coisa, para mim não há como um sumo de laranja natural.
    ~CC~

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    1. Vou experimentar a versão pudim. Já tenho mais uma receita :) Apenas acho que é manteiga a mais. Corto sempre um bom bocado.

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