terça-feira, 2 de janeiro de 2018

dar de comer aos pombos







a mulher que dizem que carrega uma doença, fala-me das maiores atrocidades com um ar sereno, uma voz calma, dicção impecável e um sorriso no rosto. eu entendo o que ela me quer mostrar. que é tudo cíclico, que a vitima será o agressor, e o agressor a vítima, se não nesta, noutras encarnações. que a vítima, ao denunciar, tornar-se-á no violador, perseguindo sem piedade quem a violentou. 
- caramba, a denuncia tem que ser feita, tem que ter voz
ela concorda, mas que... eu entendo-a, mas bolas...
- são processos
digo-lhe. e nisto de lhe chamar 'processos' cabe tanta coisa, e concede-me algum descanso, na sua incapacidade de discordar
- o ser humano não evolui - diz ela - andamos há milénios a cometer as mesmas atrocidades, com máscaras diferentes
- eu acredito que evolui - digo eu - nunca existiram tantos trabalhadores humanitários, tanta gente a tentar fazer tanto por aqueles sem visibilidade mediática
ela olha para mim, com o mesmo sorriso, com a mesma serenidade, reconhece o meu cansaço, e resolve sair
ela vive remoendo encarnações anteriores. eu procuro entender o que sinto

enquanto escrevo isto, encontro aqui do lado esquerdo da secretária, um papel sarrabiscado por mim, onde anotei uma frase que ouvi no vídeo 'há pessoas para quem celebrar a vida é dar de comer aos pombos. há sinais, há sintomas de alegria, encontra-a, persegue-a, escava.'











8 comentários:

  1. nã sei com quem concordar... mas agora tenho uma pega, ou pica pica, que vem depenicar os restos do pão.

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    1. dar de comer a pegas é um acto de coragem. são enormes, pretas e fazem muito barulho. eu só dou de comer a pardais, e porque fazem chantagem comigo.

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    2. isso faz de mim o mais corajoso dos covardes?

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    3. não. tens corajosos sintomas de alegria. persegue-a :)

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    4. nã tenho nada... é só soluços!

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    5. Percebes nada de sintomas de alegria. Depois ela quer sair, não a reconheces, e ela soluça.

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    6. se calhar preciso de óculos... só vejo tristeza...

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    7. a tristeza é a alegria cansada de ser sempre alegre e flutuar. então, ela desce, aninha-se e fica a parecer triste.
      estes dias também ando assim. mais por baixo.

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