quarta-feira, 19 de julho de 2017

essa ponte sagrada









tentei reanimá-las, às palavras. fiz respiração boca a boca, bofeteei-as, tentei assustá-las, fiz-lhes cócegas, dei-lhes a cheirar amoníaco, tentei o cheiro do mar, a nortada e a chuva. choveu toda a manhã, por dentro e por fora, mas choveu tanto que elas recolheram ainda mais num sufoco mudo enquanto eu sentia as gotas finas e frias, lembrando-me cada cantinho de pele morna, esquecida. mas as palavras continuaram caladas.

pego num livro qualquer, abro numa página vincada
quando ele me dirigiu a palavra, nesse primeirissimo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. o que havia feito era comerciar palavra, em negoceio de sentimento. falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. falar é outra coisa, vos digo. dessa vez, com esse homem, na palavra eu me divinizei. 

depois as palavras desfizeram-me em poeira.
















2 comentários:

  1. Anuska,
    esquece o amoníaco, já experimentei (por engano e curiosidade com o belo frasco sem rótulo, o meu pai usava-o para limpar as moedas dos imperadores romanos :).

    É preferível a poeira, da qual surgem tornados (então no Verão...) magníficos :D

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    1. experimentarei então a poeira, apesar das alergias...
      bom dia, alex :)

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