o rapaz

à minha frente, o rapaz desenha. sentado no sofá, com o diário gráfico nos joelhos, a respiração dele altera-se conforme os traços longos que a mão esboça. ele não sabe que o observo, de tal forma está absorto no que faz.

o zé era um sorriso só, até entrar para a escola. depois, começou a chorar. chorou todos os dias, desde o primeiro ano do jardim de infância até ao quarto ano do ensino primário, por isso, sete anos a amanhecer com choros. nunca gostou da escola, nunca gostou de estudar, nunca compreendeu porque tinha que aprender matérias que não lhe diziam nada, custava-lhe o convívio com os colegas, a competição entre eles, a maldade de alguns, o bullying. no 10º ano, na área de artes, começou a interessar-se por algumas disciplinas e a distanciar-se dos colegas, mais tarde, entrou na faculdade em belas artes. 
pensava eu que o zé estava a ser bem sucedido no curso que escolhera, e na realidade já tinha deixado de frequentar as aulas há três meses, tinha perdido o ano por faltas. embora todos os dias saísse de casa e apanhasse o metro no horário certo, em vez de ir para as aulas, ficava na biblioteca municipal a desenhar, a escrever, dias a fio, semanas a fio. não lhe interessavam as cadeiras, não se identificava com os colegas. tinha um sonho e a vida não lhe fazia sentido se não fosse para lutar por ele, explicou-me, com os olhos cheios de lágrimas.

agora, o zé está a fazer um curso de japonês e frequenta aulas de desenho no atelier de um artista conceituado. finalmente identifica-se com o que faz, com o professor, com o método de ensino, com os colegas, e constrói o seu sonho. em vez de faltar às aulas, negoceia com o professor mais horas, mais dias.

aos 21 anos, o zé recuperou o brilho do sorriso que tinha aos três anos, é que ele sorri com a boca, com os olhos, com a testa, com os ombros, com o corpo todo. é a pessoa mais bonita que conheço, mais humana, mais solidária, responsável, forte por dentro. 

eu acredito nele.