terça-feira, 25 de setembro de 2018

natural









a coisa mais natural no mundo é morrer, e bem mais certo do que nascer, que nascer podes, sim ou não, mas morrer é certo e sabido. mesmo assim, a vontade de pousar a cabeça em cima da mesa e deixar-me ficar, é imensa, e de verdade chorar, sem mesmo aproveitar a ajuda do monte de cebolas descascadas que se avoluma em cima da banca. eu, que sou tão tu cá, tu lá, com estas coisas de vidas e mortes e encarnações para a frente e para trás, desta vez doeu-me, desta vez zanguei-me, desta vez senti que foi roubado tempo de vida que devia ser vivido por uma qualquer negligência médica, esse lugar tão comum.
...
esbardalhei-me a caminho do velório. completamente esparramada no meio do chão, numa rasteira tão bem à moda do defunto, que havia de jurar que o vi rir mostrando os dentes brancos naquele rosto sempre moreno. corpo inteiro nas pedras da calçada, mãos, pernas, ombros, cara. tudo esmurrado. uma perfeição. entro na igreja a limpar-me com toalhetes húmidos.
se em vez de gastarem tanto dinheiro com flores, comprassem vinho e bebessem... sussurra-me o homem sem corpo.
pego na rosa branca que me entregam para deixar no cemitério, invento uma desculpa, e trago-a para casa. desapareço para dentro de mim enquanto o morto resiste em desaparecer para fora da vida.









4 comentários:

  1. É sempre Saint-Exupéry que me ocorre, Ana: “Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”
    Abraço muito grande.

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  2. Um abraço apertadinho, ana. Sei bem que em momentos assim fazem falta os abraços. Não curam, mas dão-nos algum consolo.

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