terça-feira, 29 de maio de 2018

um cortezinho e estava feito










dona cecília tem 86 anos e vive aqui no prédio com uma senhora brasileira que lhe faz companhia a partir do fim das tardes de todos os dias. a minha vizinha, a dona cecília, é uma pessoa activa, dentro dos horários dela ,que a levam a deitar-se por volta das duas da manhã e, por isso, a levantar-se tarde. ela faz com muito gosto e talento, trabalhos de mãos, pinta, borda, constrói presépios e peças alegóricas à época que se estiver a atravessar. 
a dona cecília tem insuficiência renal e há vários anos que vive na iminência de ter que se submeter a hemodiálise. no entanto, com cuidados de saúde, regras na alimentação e uma vida activa, a minha vizinha tem escapado a essa sina. entretanto, entendeu a médica por bem colocar-lhe um cateter para a eventualidade de precisar do tratamento. ficaria o trabalho adiantado, alegavam, alegação que não a convencia, pois, achava ela que no corpo dela mandava ela, e não queria tubos enfiados no abdómen. que não custava nada, diziam-lhe todos, que era só um cortezinho e estava feito, que no dia seguinte já estava de volta à sua casa, aos seus lavores, às suas amigas viúvas. e a dona cecília adiou por duas vezes, justificando com compromissos sociais, na esperança de que o assunto perdesse a validade.
mas os médicos continuavam, e filha e genro continuavam, que não custa nada, que entra num dia e sai no outro, que se não o fizer pode ter complicações, e a dona cecília concordou, por consideração a quem não considerava a vontade dela.
então afinal no corpo que era dela, e com a melhor das intenções, foi-lhe feito um grande corte, uma ferida que sangra sem aviso, e instalou-se-lhe um mal-estar que não se ajusta a um corpo de 86 anos.
que foi enganada, diz dona cecília, que caiu numa tristeza profunda, corpo aberto sem querer, mexido e remexido por dentro, sangrando em sinal de protesto. 
foi com a melhor das intenções, sem dúvida, e um acto perfeitamente legal que leva a pensar a abrangência das leis, a desvalorização da capacidade de decidir, e as intenções dos outros.


















4 comentários:

  1. A palavra-chave neste assunto é “estorvo”, Ana. Enquanto houver quem possa opinar e, no limite (em sentido estrito), decidir, e considere o outro um estorvo, o processo estará todo inquinado pela conformação (desejo?) de morte (do outro, repito). O tal legal homicídio, se é que essa noção é aceitável.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. e às vezes com a suposta melhor das intenções...

      Eliminar
  2. se fosse um país decente, Dona Cecília podia negar-se ao tratamento... pois espero ter eu forças para terminar como desejo e nã depender de ninguém.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Às vezes parece-me que nos preocupamos mais com a forma como vamos morrer do que com o desperdício de vida que vivemos

      Eliminar