segunda-feira, 7 de maio de 2018

o homem-criança








quando cheguei a casa da mulher que dizem que carrega uma doença, ela estava sentada no sofá com a expressão de um pardal que caiu cedo demais do ninho. ao lado dela, o homem-criança descascava, e partia em pedacinhos, fruta, que ia caindo para uma taça, colocada entre os dois. 
ele descasca a fruta com a cabeça inclinada para o seu lado esquerdo trincando a língua, que tem ligeiramente fora da boca, dobrada, numa figura cómica. mas eu chego lá tão cansada que nem brinco com ele. de vez em quando, oferece-nos, com a ponta da faca, pedaços de morango, maçã, ou manga desfeita, por ser madura demais.
a mulher que dizem que carrega uma doença, vai-se movendo com cautela, sem sair do lugar, como se tentasse escapar às dores que, nos últimos tempos, têm tomado conta do seu corpo franzino. digo-lhe que está bonita, que tem o cabelo bem entrançado.
- foi ele
responde, com o olhar implorando alívio a algo invisível
- ele fez-me uma massagem com óleos, fez-me uma limpeza energética, penteou-me, deu de comer aos gatos, limpou a areia, separou o lixo, limpou-me a casa e agora está a fazer salada de fruta para o jantar.

o homem-criança, não lhe é nada, e é-lhe muitas vezes tudo
- ele recusa crescer
dizia-me ela frequentemente
- estou cansada disso, não quero ficar mais com ele
e foi por isso que eles se separaram
lembro-me de há tempos ela perguntar
- o que é que eu tenho que aprender com ele?
e o oráculo da dona fernanda, antes de ser enterrado por baixo das raízes da arruda, a responder-lhe
- a ser criança, aprender a infância com ele. a leveza, a alegria, o desprendimento
então eu, também
- aprende a infância com ele
a tentar que ela entendesse. e ela entendia, mas não sentia, e sentir é um entendimento maior, é um entendimento que fica por dentro, paredes meias com o coração

o homem-criança saltita na casa dela, numa alegria que tenta derrotar a tristeza
- eu acredito que ela se vai curar. vocês parecem uma múmias...
ralha-nos
e eu abraço aquele homem-criança e renovo em mim toda a inocência da infância, a esperança, e, com sorte, a confiança, também, e rio com ele.








8 comentários:

  1. Talvez devamos ser todos um pouco crianças. Carregamos a inocência e sofremos menos...

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  2. Essencial nos momentos menos bons, sobretudo de doença, essa inocência, às vezes quase a raiar a inconsciência. E continuar a rir, vermos e sentirmos riso à nossa volta.
    ~CC~

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  3. Também nem sempre (ou quase nunca) consigo esse desprendimento, essa leveza, mas tenho pena.
    Boa semana, ana. :)

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  4. Tenho-me perguntado o que terei eu a aprender com um homem também...

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