sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

não dói





o cancro não dói
diz-me a mulher que dizem que carrega uma doença
por isso estas dores todas que eu sinto, só podem ser um bom sinal. é sinal de que isto está a evoluir. o homem diz que é bom, para eu ficar contente
e a mulher fala enquanto conduz, com o olhar irrequieto saltando da estrada para mim, de mim para o volante, do volante para a estrada e da estrada novamente para mim. eu vou calada
por isso, se me dói, aqui, aqui e aqui, é sinal de que está num processo qualquer que pode ser de desinflamar. certo?
sim, tem lógica
respondo
mas se precisares de alguma coisa, a qualquer hora, seja quando for, por favo telefona-me
a mulher sorri. ela sorri sempre. é impossível avaliar as dores que ela diz que tem, a não ser pelo seu olhar saltitante
se a minha doença tem retrocessos, é porque ainda não atingi a serenidade que devia. de vez em quando vêm-me as zangas, as raivas. tenho que trabalhar mais o amor incondicional, tenho que me lembrar, tenho que integrar
podia ter-lhe falado do peso enorme que ela põe nos seus ombros, na responsabilidade, mas eu sei que o que ela me fala é a sua força para continuar, é o para quê dela
é difícil, sofia. às vezes as marcas estão tão dentro, tão fundo, que tem que ser muito lentamente que as expomos e olhamos para elas. mas é tão interior...
ela olha-me, curva a cabeça
obrigada por me ouvires. ultimamente despejo em ti todo o meu lixo
a mulher deixa-me em casa e segue sozinha. terá à sua espera os gatos e a casa fria. eu trago comigo a tristeza e a esperança a que me agarro com unhas e dentes. unhas e dentes, à esperança. pode ser que um dia ela consiga falar de trivialidades, de poesia, de roupas, do tempo, de músicas, de cinema, de política, em vez de falar de interioridades, em vez de se ouvir falar-me dos recônditos das suas vidas, dos padrões que repete, das mágoas que carrega. aí, qualquer um terá ouvidos para ouvi-la.










12 comentários:

  1. quero comentar algo que nã seja idiota, mas só penso na sofia...

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  2. Cada vez mais acho que ouvir, ouvir assim, com o coração, é um tesouro que se oferece.
    Um beijinho, ana.

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  3. Ana, não doer (e não falo da dor psicológica mas da física) é relativo, depende bastante do sítio, da terapia a ser realizada, etc...para mim houve uma fase terrível, de uma dor que nenhum, mesmo nenhum medicamento conseguia retirar e praticamente não me conseguia mexer (quando coloquei as próteses no esófago). Mas claro que há outras dores e a sofia deve ter um bocadinho de todas elas, a pior deve ser mesmo a de ter a casa fria e é nisso, mesmo nessa parte que todos podem ajudar, porque todos podemos ajudar alguém a ter a casa mais quente (a Ana tem o meu mail e a sofia pode escrever-me, caso queira, goste, precise, de falar com alguém que passa mais ou menos pelo mesmo que ela). Eu penso sempre que é um abraço que se acrescenta e na altura (e agora) os vossos, mesmo virtuais, foram bons.
    ~CC~

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  4. um beijo à sofia e outro a ti, ana bonita.

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  5. Falar e ter um ouvinte é terapêutico. Força!

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  6. Também me disseram que essa doença não dói. Mas eu acho que dói. A alma.... E fisicamente também acaba por doer, mais na recta final... Mas todos são diferentes, nada é regra. Abraço ana

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    1. sim. cada um sente as dores à sua maneira. as da alma e as do corpo.
      bom resto de domingo, Maria :)

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