sexta-feira, 9 de setembro de 2016

gestos lentos












os gestos lentos das mães faziam com que a comida chegasse, multiplicasse até. os gestos lentos das mães faziam com que o tempo dilatasse e num dia coubesse todo o cuidar, todo o partilhar, todo o amor. os gestos lentos das mães cerziam, reparavam, vestiam, agasalhavam, confortavam. os gestos lentos das mães cuidavam e amparavam e naqueles regaços havia colo que chegasse para o mundo. os gestos lentos da mãe eram terra, abrigo, céu e alimento.

naquela cozinha, naquele domingo, os gestos lentos de duas ou três mulheres preparavam a refeição para vinte. uma travessa, feijão frade, atum, tomate, ovos cozidos e temperos. eles vinham em grupos, de quatro, de três, de seis, e por aí fora e iam servindo-se. sentadas a observar, as mulheres, também elas saciadas, sussurravam, 'repara como a comida chega, repara como estão todos alegres e em paz'. uma contabilidade improvável.

'antes de se começar a comer, a comida chega para todos', ouvi sempre a minha mãe dizer. e, ainda hoje, reparo, quando ela distribui a refeição pelos nossos pratos, nos gestos lentos dela, no servir. 
todos os dias acontecem milagres que não vemos. fossem as pessoas mais lentas no agir, mais serenas no pensar, mais dedicadas no desejar, mais generosas na partilha, e o tempo dilataria.

'disponibilidade de coração', dizia-me ele num sonho.












4 comentários:

  1. Agora que aqui o leio, vetifico que é verdade. Tudo era diferente porque eram gestos mais lentos, aqueles de que me lembro. O contrário dos gestos de hoje.....

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  2. é verdade, Maria. e o tempo chegava para tanto...

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  3. que bonito :)

    tenho uma amiga do norte que antes de nos servir a comida perguntava: "queres que te deite?"

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