quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

esbaforidinha

































(chove outra vez)

a dona fernanda tem tocado à campainha insistentemente nos últimos dias. eu faço de conta que não a ouço. enerva-me. enerva-me que pense que lá porque trabalho em casa, não trabalho, ou antes, tenho o tempo todo disponível para quem chegar. 

(mas adiante, a chuva faz riscos oblíquos e paralelos lá fora. as linhas vão encontrar-se, apesar de paralelas, quando se desfizerem, ao bater no chão)

mas hoje, devo ter acordado com uma dose extra de generosidade e resolvi abrir a porta à dona fernanda. talvez seja da chuva que faz com que o meu coração esteja mais aberto ao aconchego.

- então, dona fernanda... há tanto tempo... o que é feito de si? - pergunto com a maior cara de pau deste mundo e do outro.

a dona fernanda vem aflita, esbaforidinha de todo, numa ansiedade para falar, que só visto, pois, diz ela mais uma vez, só comigo diz o que lhe vai lá dentro. 
como de costume, senta-se na cozinha e eu encosto-me ao balcão para ouvi-la. de vez em quando, arrumo daqui e arrumo dali, pois só tenho que ouvir e não me cabe falar grande coisa.

então passa-se que a mulher, ela mesma, anda com o diabo no corpo - meteram-mo - diz ela corando por antecipação. - sabe que eu até sou mulher de andar com os meus desejos recatados, de tal maneira que até acho que já nem os tinha, as ânsias de que todas falam e que as levam a querer homem debaixo dos cobertores, a mim não me assomavam, vivia eu a minha vida sossegada, a saber hoje o que ia ser o amanhã, da pele nem me lembrava, e afagos, só aqueles gestos de lavar o cabelo, de vez em quando.

(eu ouço, cansada de saber daquela discrição de mulher, que parecia que tinha feito jura de abstinência a um santo qualquer)

(agora chove que deus a dá, é o descontrolo total nos céus - o dia é meu)

mas então, diz a dona fernanda que não sabe por que carga de água (não da chuva que aqui vejo), de repente começou a receber mensagens de um desconhecido (não me disse como, e como não me cabe falar, fiquei sem saber), o tal que lhe meteu o diabo no corpo.
que, conta ela, no inicio, muito bem falante e cordial, assim como ela, bem metida com ela mesma, mas de repente começou a falar-lhe, ou antes, a escrever-lhe, dumas coisas assim, com alguma subtileza, mas nem sabe ela como, a provocar-lhe sensações de corpo, ela que o tinha ali bem apaziguadinho, ao corpo, claro. e, arregalando-me os olhos, assegura-me, não sei se para que eu não pense mal dela, mas assegura-me que não são sensações localizadas, mas sim pela pele toda, ou antes, em todo o lado que o corpo tem pele.

(e o trabalho a ficar por fazer)

eu, ali a olhar para ela. ela a olhar para mim. a querer que eu fale e que cale ao mesmo tempo, pois diz ela que não tem a quem falar, nem do dito sabe nada, nem quem é, nem onde pára. dele, tem ela aquela sensação pelo corpo todo.















19 comentários:

  1. Há sempre uma vizinha mais velha que precisa da nossa atenção! :)

    Por cá também chove de novo. Antes nevasse! Com o frio que está, não sei, não...

    Bom resto de dia, ana. Beijo

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  2. É verdade. Haja tempo para elas.
    Beijo, deepLuisa :)

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  3. ana, não sei porquê, (mas suspeito), que me lembrei agora de O fabuloso destino de Amélie Poulain, isso parece mesmo uma partida...e nem traz fruta a Dona Fernanda! Ele há cada uma... :)

    Beijo, conta as cenas dos próximos capítulos!

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  4. Teresa, acreditas que não vi o filme? pois não...
    vamos lá a ver como a história se desenrola. não é fácil 'conversar' com a dona fernanda... se ao menos trouxesse fruta...

    beijo :)

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  5. Ana, estamos cercadas! Há réplicas da minha vizinha por todo o lado! A tua também parece ser fresca, vai logo direita ao assunto. A minha é mais metafórica, mais naturezas-mortas :)

    Um beijinho

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  6. mas a minha é discreta... diz ela que os desabafos são só comigo...

    beijinho :)

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  7. A D.Fernanda parece que acordou :) e eu acho que ela apenas quer ser ouvida :)

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  8. acordou...mais parece estremunhada... coitada, sem saber o que fazer à vida, ou antes, ao corpo, parece-me... :)

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  9. o caso da dona fernanda, é, no mínimo, peculiar...penso eu, que não estou muito informada destas situações...

    :)

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  10. manda cumprimentos à Dona Fernanda, faxavor... e ao diabo dela.

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    1. A ela mando. Com os diabos não quero nada, nem me chego...

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  11. Xiii. Uma vizinha com o diabo no corpo? Antes trouxesse laranjas, mas que as deixasse á porta com um bilhete :))

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  12. Hoje ela, amanhã eu...somos uns para os outros... :)

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