domingo, 14 de dezembro de 2025

apesar de tudo

 






sentadas naquela roda onde uma vez por mês aquelas quatro mulheres viajam além do espaço, do tempo e dos mundos, uma voz silenciosa sussurra que o grande desafio para este ano que se inicia a partir do dia em que o sol começar a tornar os dias maiores, será manter o Amor, manter a Alegria, manter o Alinhamento, não nos perdermos de nós mesmas. apesar de tudo.






sábado, 6 de dezembro de 2025

O pai

 






O meu pai naquele pai. 

O homem forte, curvado, sorria com o ouvido encostado à porta do elevador. 

Ainda não chegou, pai... dizia o meu vizinho do rés-do-chão

O meu pai ouve mal... justificava ele falando comigo

Ah... este elevador é muito silencioso... sorria eu para os dois

Mas aquele pai, forasteiro, trouxe-me naquele momento o meu pai, a mão morna pousada na minha, a presença.  A Presença. 

E agora que aqui escrevo, passadas já tantas horas daquele pai no elevador, a pena que eu tenho de não lhe ter dado um abraço. Um abraço apertado, fundo, inteiro.




quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Amor

 




A mulher na fotografia abraça aquele seu amor tão mais velho. Terá pelo menos uns 30 anos mais do que ela.

No brilho do seu olhar enternecido vislumbro gratidão por tê-lo na sua vida, e comoção por cada dia mais ao seu lado, como um espanto amoroso por quem ordena esta roda do tempo, não lho ter ainda levado.



segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Eles

 





Eles dizem que vem aí uma vaga de frio, e dizem para se vestir várias camadas de roupa, e beber líquidos mornos, e comer sopa...

A mulher do outro lado do telefone é a mesma que de vez em quando me previne, uma vez que não tenho televisão 

Eles dizem que pode acontecer um apagão, eles dizem que a guerra... eles dizem que a crise... eles dizem que a gripe... eles dizem que o covid...

Eu ouço e acho que eles querem que se viva com medo, tolhidos, medicados, prevenidos, comandados...

O raio para eles... 






sexta-feira, 21 de novembro de 2025

o senhor carlos

 




o senhor carlos morreu. 

aquele homem rude, fluente em palavrões, com cerca de setenta anos e não sabia ler nem escrever, no século vinte e um, nem ele nem a mulher.

morreu. 

agora, ao domingo de manhã, já não vai ser ele a estrear o carreiro da horta que divide os talhões. serei eu, bem cedo, a dizer mal da fechadura, que perra, devia ter sido ele a abrir.

mas morreu. ele que me dava umas folhas de vez em quando e alfaces para plantar que nunca consegui que vingassem. dava-me a mim e a mais ninguém, que os outros, dizia ele, não eram de bem.

o senhor carlos, que dizia ter sido salvo por nossa senhora, morreu naqueles dias de chuva intensa que tudo varreu que  tudo alagou que tudo lavou. e ele foi-se sem que chegasse a dar pela  falta dele.

no meu altar, ficaram as sementes de abóbora, que o homem rude me deu, colocadas em forma de flor, para que os seres de luz cuidassem dele. e ali estão, agora à espera de terra fértil, para  que de alguma forma ele sinta o sol outra vez, para que de alguma forma, a luz o oriente.




domingo, 16 de novembro de 2025

tenho pessoas à minha espera

 





a mulher atravessa a garagem do prédio com os pés submersos na água que invadiu todo o espaço comum, com os sacos pendurados nos ombros enquanto as mãos levantavam as calças para que não se molhassem. os vizinhos andam de um lado para o outro falando ao telefone, mudando os carros de lugar, indagando o que fazer, enquanto a observam de pés encharcados naquela água fedorenta.

tenho pessoas à minha espera - diz ela - tenho de sair. agora não posso tratar disto.

senta-se com a porta do carro aberta, descalça sapatilhas e meias, calça outras, secas, coloca as molhadas dentro de um saco, e sai.

tinha chovido torrencialmente mas naquele momento a tempestade acalmara. segue rumo a 'tenho pessoas à minha espera'. a estrada aparece cortada devido a inundações, o trajecto alternativo, apontado pela polícia, parece um ribeiro com corrente forte. e ela segue. tem pessoas à sua espera.

estaciona. a porta de casa abre-se. lá dentro as pessoas. abraçam-se. sentam-se. cruzam os olhares como crianças apanhadas numa asneira.

somos doidas varridas - diz a mulher - ou temos muita vontade de estar juntas...

sentadas à mesa, erguem os copos e brindam - à amizade, a nós, à saúde, aos reencontros.

é bom, termos pessoas à nossa espera.







quinta-feira, 13 de novembro de 2025

bruxa

 




ainda desejo a chuva.

as gotas que molham o meu rosto ao fim do dia, que amaciam as dúvidas e a inquietação pelo tempo que voa. os passos cuidadosos nas folhas escorregadias no passeio, o filho que me acompanha aprendendo os meus delírios, abrindo horizontes na aridez da rotina, alargando os meus com a sua sabedoria antiga, de outras galáxias, de outras vidas.

falo das ondinas, das sílfides, de como a água que vem do céu nos alivia das cargas, de como o vento sacode muito mais do que cabelos e roupas.

fica-me no peito um sorriso, uma ternura guardada, pois estes meninos, agora homens, ainda ouvem os meus devaneios, as minhas loucuras, as minhas verdades, e interiorizam, e aceitam, e, arrisco a pensar, que as vão tornando, pouco a pouco, deles, enquanto com carinho, asseguram-me que sou bruxa.






terça-feira, 11 de novembro de 2025

vento

 





aborrecido, Éolo apostou em despir as árvores em tempo record. daqui, do lugar onde me sento, os ramos sacodem, em todas direcções, as folhas, outrora verdes e agora amareladas, que ofereceram abrigo às aves durante todo o verão. e elas são levadas pelo vento, num misto de liberdade e redenção.

a mim, o vento diverte-me. a imprevisibilidade do sopro, os cabelos justificando o seu desalinho, a carícia onde roça na pele. abro os braços e peço que leve o que já não me serve, que me limpe, que me alivie.

em breve virá o tempo em que as minhas amigas, nuas, adormecidas, me deixarão ver o nascer do sol por detrás da capela no cimo da encosta aqui da terrinha... manso, promissor, dando coragem para enfrentar um novo dia, um de cada vez, nascendo devagarinho, silencioso...




sábado, 8 de novembro de 2025

direitos

 





a mulher que à minha frente se deliciava com duas pizzas, ora uma, ora outra, falava ao telefone:

- estou a comer uma sopa

dizia, com naturalidade

por instantes, condenei cá com os meus botões aquela mentira insignificante... para quê... não se poderia dar ao direito de comer uma pizza? mas depois, percebi que talvez não quisesse que a pessoa do outro lado lamentasse não poder partilhar o momento, ou talvez que a julgassem desafogada, como se o desafogo fosse pecado, e talvez fosse, aos olhos da outra.

vim para casa menos intransigente, mais maleável na minha condenação da mentira, tentando entender o direito a não dizer a verdade. afinal de contas, o momento era dela, para ela, com ela.





segunda-feira, 3 de novembro de 2025

caminho

 



a mulher calcorreava as ruas com passo apressado. chovia. o casaco fino que trazia não tinha sido feito para a abrigar da chuva. as calças de malha, supostamente brancas, cresciam-lhe por baixo das sapatilhas, com o peso da água que pisava. pisava chão, pisava água, pisava as calças. mas não se detinha. talvez tivesse horas para chegar. no ombro, inclinado, levava a bolsa e na mão o telemóvel de onde só desviava os olhos para atravessar uma rua. seguia o caminho pelo gps. estaria perdida, ou estrangeira naquela terra sem alma feita de prédios, alcatrão e trânsito. muito trânsito. quem a visse, julgá-la-ia alienada, completamente alheia ao que a rodeava, com o fito único num qualquer número de porta. ainda ouviu alguém dizer-lhe de passagem 'está a chover...', como se não soubesse. a chuva que caía subia-lhe pelas pernas, e descia pelos cabelos. o que a conduzia, só podia ser maior do que ela, do que o tempo, do que a orientação terrena dos seus passos, do que o seu desiquilíbrio.

talvez seja assim que caminham os loucos, conduzidos por algo maior do que eles.