domingo, 21 de junho de 2020

alcatrão








a mulher respira fundo. há muito muito tempo que o ar não entrava assim no seu corpo, como a água que rompe a comporta e invade a terra sôfrega.
naquele espaço sem tempo nem solo tudo lhe é mostrado de rompante e sem a ordem dos dias de cima. a vida apareceu-lhe aos farfalhos sentindo como a vivência das suas ancestrais estavam gravadas nas arestas da sua vida, naquilo que estava ali para entender, nos desvios da sua alma.
tinha sido naquele momento em que lhe entregavam o que lhe era devido que foi surpreendida com uma vergonha incompreensiva e encorpada. 
percebeu naquele momento que anos e gerações de mulheres estavam ali com ela incutindo o sentido de sacrifício, de esforço, de trabalho, de desvalorização, de imerecimento, um castigo por ter nascido mulher e que estrangulava o fluxo da sua vida. era algo que a transcendia mas que dificultava o seu caminho como os passos no alcatrão derretido na estrada num dia quente de sol.
porque me é mostrado agora? 
porque só encontras a estrada quando começas o caminho.










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