quarta-feira, 21 de novembro de 2018
electrodomésticos
foi quando a máquina da louça começou a verter água que eu percebi a falta que a mulher que diziam que carregava uma doença me faz
fala com ela
ter-me-ia dito naquela voz quase sussurro, sustentada por um olhar de passarinho assustado
e eu falaria
esqueço-me sempre de falar com os meus electrodomésticos
disse-lhe eu tantas vezes
eles são energia, também, tudo é energia. fala com eles. eles ouvem-nos e muitas vezes voltam a funcionar
e começaria a contar histórias e histórias em que os seus electrodomésticos cederam aos pedidos que lhes fez, e eu ouvi-la-ia, como sempre, com paciência e gosto.
é uma chata
dizia a maior parte dos que a rodeavam
obrigada por me ouvires
dizia-me ela
obrigada por me permitires que te ouça
respondia-lhe eu
morreu no solstício de verão, e, reparo agora que fazem hoje precisamente cinco meses, e também só hoje sinto a imensa falta que ela me faz.
ela trazia a magia, trazia as fadas, trazia todas as encarnações com ela, todo o sofrimento e toda a gratidão. ela era a procura, a transmutação, a resiliência, a esperança. ela era toda ela a falta de amor, a ânsia de amor, a dádiva de amor.
passados cinco meses, enquanto a máquina da louça trabalha, eu percebo a falta que aquela mulher pequenina, com asas tatuadas nas costas e borboletas presas no cabelo, me faz.