espelho

passo a manhã do primeiro dia do ano com a mulher espelho que chora baba e ranho, enquanto eu rio
e a ana ri-se
diz a mulher enquanto se assoa
desculpe, mas dá-me vontade de rir...
e rio
...
vou levá-la ao mar
e levo
caminhamos na areia molhada enquanto conversamos a vida dela tão parecida com a minha e eu falo-lhe coisas que precisava que me dissessem a mim
trata-se de nós mesmas, de não nos perdermos de nós
digo-lhe eu, que, tal qual um iôiô, me afasto do que sou e me perco naquilo que é suposto todos serem e sentirem
...
está no nosso adn, sabe... esta fuga da nossa natureza, da nossa grandiosidade
murmuro palavras que ouço saírem de mim
mas um dia dá-nos assim um clique... e tudo faz sentido...
...
e eu à espera do clique
...
a outra, que já não chora nem funga, agarra a ponta do fio e desenrola conversa sobre ela, quando eu
agora vamos ao mar pedir que Iemanja nos ajude
e a outra vai, e faz o que me vê fazer, e demora-se muito mais do que eu, e volta
mais leve, calças arregaçadas e o rosto cheio de azul do todo, e eu mais leve, também, lembrando que me esqueço de me fazer prioridade, esse lugar comum, essa conversa de treta, tão treta, tão certa