da noite

se conto isto, conto-o para ti. para ti, cujo rosto está em todo o lado, de cada vez que fecho os olhos.
há muito que deixei de reclamar quando o homem-terra diz vais lá e ... por isso, quando ele me disse vais ter com ele e ouves o que ele tem para te dizer, eu nem perguntei porquê, e tudo o que vi, vi de olhos fechados, e tudo o que ouvi, era inaudível. assim como quem dorme, assim como nos sonhos.

então quando lá cheguei, cobriram-me com um véu branco, preso na cabeça com uma trança de tecido e colocaram-me nas mãos um ramo de flores.
[não me digam que me querem casar com ele]
pensei eu
e comecei o meu caminho
embora o véu fosse branco, eu ia vestida do escuro da noite. mas, o chão que os meus pés nus pisavam para ir ao encontro dele, tornava-se de areia macia, aquecida pelo sol do dia, a cada passo que eu dava, naquele andar lento e demorado. como se a luz que as pegadas deixavam no chão pisado, fosse o propósito da minha viagem que lhe conferia.
quando o encontrei, a sua forma, humana, transbordava numa doçura nunca antes sentida entre os homens. então tomou a minha mão, e, com graciosidade, fez com que eu rodopiasse, e enquanto eu rodopiava, naquela espécie de dança antiga, a noite que trazia no meu corpo, dava lugar ao sol do dia. apenas a cabeça continuava coberta do manto negro que abriga as estrelas
como faço para dissipar a noite?
tens que perder os medos. flutua
e eu flutuei. eu acima de mim, eu sem peso de corpo, eu na companhia das nuvens. mas naquele momento em que me senti leve, tive medo da leveza, tive medo de ser livre.

ele falou tão pouco...
lamentei
falou muito. ouviste tudo o que tinhas que ouvir, disse o homem-terra. entrega-te nos relacionamentos com os outros, mulher, senão vais ter oitenta anos e não viveste. vem tudo dos medos, tudo. quantas vezes já ouviste isso...