quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

ela e os eles dele









ele é grande demais para caber num só, argumentou a mulher, ou então, serei eu que não tenho tamanho para tanta imensidão.
então decidiu seccioná-lo e dividiu-o 

nele, que fazia de conta, e brincava de ser corpo e de se passear pela pele. trocava as palavras e jogava às adivinhas fazendo do pequeno grande e das aparências barquinhos de cascas de noz. também gostava de a percorrer despertando desejos e depois sair por aí a colher poemas e distribuir músicas daquelas que já ninguém ouve. 
ele às vezes era alegre e outras triste. como as pessoas. e gostava de praia e sol e de flores e de fruta. também gostava de chocolate que comia às escondidas dele mesmo.
se tivesse um cheiro, ele cheiraria a relva cortada de fresco

numa velha caixa de charutos tinha guardado o sisudo. aquele que olhava para a vida com olhos de gente crescida e séria como se carregasse a história do mundo nos ombros. governos, amores, traições, derrotas e glórias. 
este também sofria de amor e raramente se alegrava, como se para amar não pudesse ser leve e feliz. 
passava dias debaixo de um candeeiro de leitura com os óculos na ponta do nariz mergulhado em livros
se tivesse cheiro, cheiraria a bafio, a corpo constipado

a este que vou descrever agora, ela guardou-o numa caixa de pau santo com tampa de madrepérola, de forma a que parecia ser transparente, mas não era. 
só de noite, no recato que antecede o dormir, se atrevia a levantar a tampa. então aí ela encontrava-o absorto dela, num mundo onde ela não existia. aí, ele movimentava-se com rapidez e falava com palavras que ela não entendia. 
sustentava-se em mecanismos metálicos e frios, usava a linguagem dos números e cada pormenor (da sua vida dele) tinha o encaixe perfeito nos mapas que ele próprio desenhava
se este homem tivesse um cheiro, cheiraria a metal oxidado.

num ninho feito com novelos de algodão, ela guardava a parte em que ele era família, era cuidado, era respeito, era fraterno, era amor velado. nesse ninho ela nunca mexera, mas tinha por ele muito carinho e se tivesse um cheiro, seria o aroma suave das rosas

de fora dos homens desse homem, estava guardado o coração que se lhes unia com artérias douradas providas de um passador que regulava a quantidade de amor que passava para dentro do seu peito.
10% para o primeiro, 1% para o segundo, 0,05% para o terceiro, 20% para o quarto e 67,95% para o seu eterno amor

foi no jogo da minha mãe dá licença, com o primeiro, que o terceiro ganhou força. no momento em que, obedecendo à ordem de dez passos à caranguejo, ela descaiu os pé no rubicão, aquele rio dourado que separava mundos.
só com 0,05% do líquido que lhe vinha do coração, cortar, separar, reduzir, anular, eram tarefas que o terceiro fazia com rapidez e aprumo. de tal forma rápido que os outros três não tinham tempo para intervir.
então foi assim que quando ela molhou o pé no rubicão, ele, com um tempo de reacção imediato, tomou controlo dos outros todos

sobre isso aí acima, conta a mulher, que sobre o rubicão, apenas conhecia a frase allea jacta est que o seu pai usava quando o único caminho que havia para tomar era para a frente, e sobre o homem









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