sábado, 16 de setembro de 2017

o homem que durante toda sua vida procurou viver em paz








foi já aos oitenta anos de idade que o homem foi atraiçoado, sem se aperceber, por um tumor no cérebro. veio assim anunciando-se com pequenas teimosias e sonolência crescente, de mansinho. o homem que durante toda sua vida procurou viver em paz, aceitando sacrifícios, humilhações por parte da mulher e dos filhos, privações de vontades, e dedicando-se à máquina familiar, e se lhe chamo máquina, é porque ali não existia afecto, mas sim exigências contínuas àquele que era o sustento da casa. bem, mas justificava o homem esse modo de viver com a fé que o norteava. 'também ele sofreu por nós' dizia todos os dias, 'também ele morreu crucificado'. e todos os dias se dirigia ao templo onde estava ele pregado na cruz, e todos os dias ouvia o pregador enaltecer o sofrimento, e todos os dias pedia perdão pelos pecados que ia cometendo.
agora, assim sem se aperceber, está sentado num quarto do hospital à espera de alta para se mudar para um lar, mas não o sabe. talvez tenha sido ele que o recompensou ou abençoou com a desdita, que não consigo ver como um castigo, pois o homem esqueceu tudo o que de menos bom tinha na vida, a mulher, os filhos, a casa, a família, as dívidas. sentado naquele sofá do hospital, hoje de manhã estava em londres, à espera das amostras para os clientes russos. a seu lado tinha a colaboradora, como ele chama àquela mulher que o respeita como se de um pai se tratasse, e ao telefone falava com a mulher que toda a vida amou, prometendo-lhe que assim que tiver tempo a irá visitar, e que sim, que sabe que terão sempre saudades um do outro.

só a mim, que não lhes sou nada, se me revolve o corpo todo por dentro, num desatino de incompreensão.












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