sexta-feira, 7 de julho de 2017

vive com gosto























não me lembro com exactidão onde começou o carinho que tenho por ele. se retroceder no tempo, chegarei aos meus doze ou treze anos quando o ajudava na celebração, fazendo as leituras, recolhendo as gratificações. até que um dia toda aquela repetição, todos os crentes debitando palavras que não sentiam, repetindo mecanicamente frases em que não reflectiam, me afastaram do ritual da missa. mas, além de ser amigo e visita habitual de casa, ele também foi meu professor de moral. vives com gosto? perguntava-nos ele enquanto acenávamos que sim e apertava os nossos ossos todos da mão e nos torcíamos com dor. deixem passar herculano o presbítero, anunciava para abrir caminho entre os estudantes, e abria.
hoje o frei fez 80 anos e vive com gosto, eu sei. além disso mostrou-o, ao falar do receio de que a doença de parkinson o leve para uma vida que sempre recusou explicar-me, talvez porque o que acredita não esteja de acordo com o que prega. 
sentado à mesa do restaurante, comigo e com a minha mãe, de cada vez que tenta cortar a carne ou levá-la à boca, a mesa abana toda e os pratos tilintam ruidosamente. sirvo-o de vinho com cautela, pouco de cada vez, para que não entorne enquanto o toma. durante a conversa, e apesar da memória fresca de sempre, custa-lhe a articular as palavras como se as cordas vocais também tivessem dificuldade em alinhar-se com a fala. 
eu não estava avisada do estado de saúde do meu padre e senti o seu descontrolo crescendo dentro de mim. então, silenciosamente pedi-lhes serenidade e entoei um mantra na alma, um mantra que me traz paz. eu serenei, a tremura do frei abrandou, com ternura vi-o levar o garfo até à boca com calma, e voltou a contar anedotas com as palavras fluídas de sempre. 
foi um dia bom.











2 comentários:

  1. Nem sabe como gostei e precisei de ler isto. obrigada!

    (aprender a serenar... isso é que ainda não sei. ferve tudo.)

    beijinhos, ana*

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    1. Então valeu a pena ter escrito. Não foi fácil.
      Beijinho grande, Vanessa :)
      Serenar vem com o tempo :)

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