quarta-feira, 21 de junho de 2017

da vida








a minha mãe sobe com custo as escadas da casa da música. eu, sigo atrás, com medo que o joelho lhe falhe. procuro sempre a melhor posição para a amparar, sem que ela o note, em caso de fraqueza. se sobe, subo atrás dela, se desce, desço à frente, um bocado enviesada, confesso, para que seguindo à frente consiga ver o que se passa atrás. não quero que ela perceba que lhe noto a crescente fragilidade, acho que nem quero mesmo notá-la eu. procuro aceitar a força que ela me traz, o optimismo inabalável, a convicção de que o que importa é andar por cá para sentir o frio, o sol, a chuva, o calor, que não interessa se os netos têm sucesso nos estudos, mas sim que o que importa é saber se são felizes. claro que ela também é de gancho. ai se lhe pisam os calos, ou melhor dizendo, os joanetes, que calos ela não tem.

mas enquanto ontem, eu dizia à minha amiga que temos que apreciar o momento em que os temos, e não antecipar as fragilidades deles, dos nossos pais, eu sei que envelhecer acontece de repente. hoje somos filhos, amanhã somos pais dos nossos pais. é assim de repente. aconteceu com o meu pai e eu a revolver-me toda por dentro numa dor que não me lembro de outra igual. hoje, olhando para trás, para o que vivi com ele, agradeço o privilégio que tive por poder cuidar, amparar, socorrer nas quedas, nas horas de aflição, por poder segurar a mão dele enquanto partia.

se hoje escrevo isto, é precisamente (esta palavra faz-me lembrar de ti) para voltar aí, a essa noção da honra que me deu por ele me aceitar quando estava mais vulnerável, mais frágil, mais indefeso. por ter permitido que, numa escala pequeníssima, retribuísse todo o abraço que foi a sua vida comigo.

nos últimos tempos, ao olhar para as minhas pernas reparo na evolução rápida das varizes que me desenham o rio amazonas e os seus afluentes lembrando-me que somos todos parte do todo que é a terra, as galáxias, as constelações, como tu todo pintalgado de estrelas. 
mas olho para o corpo e noto o envelhecer a cobrir por fora e por dentro, num lembrar de que a vida foge, num lembrar de que a vida é humildade, num lembrar de que o amor é aceitar. aceitar-me. ouço com carinho a médica que me recomenda a hidroginástica e rio-me ao dizer que vou pertencer às tartarugas ninja.

chega um tempo que me vejo melhor nas palavras que escrevo do que no espelho. claro que a eficácia dos meus olhos não ajuda nada.













14 comentários:

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    1. mas não te aproveites. estás bom comómilho :P
      olha, esqueci-me do teu aniversário... parabéns! :*

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  2. Emocionei-me muito ao ler isto hoje.

    <3

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  3. o corpo não conta, nem fica...

    já as palavras podem ser eternas ;)

    vou guardar estas palavras porque no curto prazo também vou subir escadas e descer como o fizeste ;)

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    1. as palavras, leva-as o vento, Miguel. é preciso colá-las com super cola 3 :)

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  4. ...este cuidar dá aconchego quando eles partem. Que nunca [te] falte carinho no amparar.
    Beijocas ;)

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    1. amparar sem carinho, não é amparar, é suportar :)
      obrigada Goti, bom serão :)

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  5. Gosto muito de ti. E bem-vinda às Tartarugas Ninja. :)

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    1. sabes que me lembrei logo de ti, quando a médica me aconselhou a hidroginástica? ... tartaruga ninja forever :)
      muito obrigada, Miss :)

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    1. já diz o caetano :) quando a gente gosta é claro que a gente cuida...
      Beijinho, Maria

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  7. É tudo isso Ana, assim mesmo. Já não tenho a minha mãe para cuidar, tenho o meu pai a quem espero não faltar. E o tempo que passa em mim, vou também aprendendo a aceitá-lo.

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    1. é tão apaziguador poder não faltar a quem nos deu a vida :)
      beijinho, Luisa

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