domingo, 4 de junho de 2017

a dona fernanda e as impossibilidades invisíveis








a dona fernanda passou cá com um ramo enorme de jarros, lá da casa que tem na aldeia. ela sabe que tenho sempre flores frescas na sala e que o gesto dela é sempre bem vindo. mas a dona fernanda quer conversar, ou, como de costume, ouvir-se pensar, pois não me exige grande participação no que fala.

- preciso que me ajude, vizinha, não tenho mão no meu sentir, e o meu sentir desregula-me o corpo, como sabe...
eu, que contava poder divagar enquanto ela monologava, volto do meu mundo e tento prestar atenção.
- então o que se passa vizinha?
- sabe daquele meu encantamento pelos falares daqueloutro. há muito tempo que não conversamos sobre isso, mas lembra-se de como as palavras dele se me entranhavam em todos os lados do corpo e da alma? um feitiço, vizinha, um feitiço...
eu lembrava-me do desatinamento em que andara a dona fernanda, mas pensava que o tempo tinha consumido um relacionamento não consumido e muito menos assumido. 
enganei-me.

- o que eu lhe peço, vizinha - continua a dona fernanda - é que daí de fora, veja o que se passa dentro da minha vida, dentro de mim, que veja o que eu não consigo ver, que me livre do que eu sinto...
eu esbugalho os olhos, arqueio as sobrancelhas, respiro fundo, acomodo o rabo à pedra da banca, e tento preparar-me para o que aí vem, depois dos jarros.

- durante, e envergonho-me por dizê-lo, enfim...tempo demais, vizinha, duplicaram as estações, se quer que lhe diga. mas durante esse tempo andei enleada em conversas, em sintonias, em sinfonias, em intuições, em arrepios, em partilhas, enfim, em tudo que não fosse fruto de presença palpável, apenas manifestações de alma. mas andei, e pronto. neste tempo todo, os anjos, os arcanjos, os santos e os orixás, puseram-me no caminho provas provadas de que o taloutro não queria de mim além do que o que eu já tinha. ou seja, nada a que me encostar nas horas de cansaço. digo-lhe mesmo que até o próprio fez com que eu o entendesse claramente. mas eu não consigo vizinha, não o consigo largar, muito pelo contrário, de cada vez que me digo que vou largá-lo, deslargo, e quanto mais eu deslargo, mais o destino abre como se fossem janelas por onde eu vejo o que não quero. é enfeitiçamento, só pode ser, e sabe que eu sei do que falo. diga-me, vizinha, o que é que eu não consigo ver dentro de mim? será que se passou tanto tempo que a minha alma fossilizou a forma dele em mim?

bebo água para ajudar-me no raciocínio, que a água é um bom condutor de existências inexistentes, e invoco o poder das tarantellas do almoço.

- dona fernanda, a vizinha talvez esteja a pensar ao invés de sentir...
- sentir, sinto eu demais
diz-me ela, com o olhar agitado
- sente apenas com o corpo, dona fernanda, sinta com o coração da alma. é ciúme o que a senhora tem - sussurro - dê-lhe a mão, como quem diz, claro, e siga a sua vida. não o ampute de si, senão fica amputada mesmo, viva-o aceitando-o e siga vivendo o seu caminho.
a mulher sossega o seu olhar, e quase que ouço o seu bater desacelerar. 
- eu vou tentar, mas sabe, quando as janelas se abrem...
a minha vontade é pôr a tocar a música endemoinhada, para que ela se solte como me acontece a mim quando a ouço, mas resolvo fazer uma infusão de alecrim e colher umas folhas de boldo e alfazema para que ela faça um banho antes de se deitar.









7 comentários:

  1. Essas impossibilidades invisíveis são do pior que há para desarranjar o sentir de uma pessoa. Pobre dona fernanda...

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    1. pobrecita, mesmo...ponha pobre nisso à vontade...um trapo...

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  2. já nã sei se posso confiar nas certezas da incerta Dona Fernanda...

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    1. (não digas isso que ela já anda traumatizada por tua causa)

      em casa de ferreiro, espeto de pau... é um provérbio estranho, eu sei...:)

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    2. já pedi desculpas pela rapidez do meu juízo...

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    3. ah....bom... é que ela tem poderes... põe-te a toques...

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