terça-feira, 4 de outubro de 2016

aqui está o texto














Nuno Lobo Antunes em «Sinto Muito»

Insucesso escolar

- «Senhor Lobo Antunes, o Senhor é um … fadista! O fadista era eu. Tinha dez anos, e estava no 1º Ano do Liceu Camões. A afirmação quanto aos meus talentos era do Senhor Reitor, figura temível e temida que decidiu verificar logo no início do ano escolar, se eu pertencia à mesma linhagem dos irmãos mais velhos. De pé, em silêncio, abriu a caderneta e, com lentidão e método, percorreu página a página, os nomes dos alunos recém-chegados. Não me surpreendeu que tivesse parado no meu. Levantei-me da carteira, hirto como uma sentinela. Não esperava a pergunta, talvez fácil, mas cuja resposta desconhecia completamente. (…) Após uns segundos (horas?) de pausa, o meu destino ficou traçado. (…) Três anos mais tarde a profecia parecia concretizar-se. Escrevi uma redacção onde sugeria que a intensidade dos meus sentimentos de adolescente poderia levar a imaginar que teria algum engenho. O Professor, escritor bem conhecido, leu, sorriu e, com total brutalidade, confirmou os meus receios: era verdade, não tinha qualquer talento. O que ali estava era mau, não prestava, irrelevante na forma e no conteúdo. O Professor disse, o Professor sabia. Ele que tinha escrito a «Aparição». Mais tarde, a docente de matemática tentou demover-me a procurar Medicina, curso difícil, que exigia trabalho e vontade bem para além do que eu prometia ser capaz. Justificava-se o conselho. (…) Da geometria, o conceito que melhor compreendia era a tangente, porque era assim que eu «passava». A professora enganou-se por mero acaso. Na faculdade aconteceu o milagre. Um médico, superiormente inteligente, ouvia-me. Coisa extraordinária que mudou o rumo de uma vida. O simples facto de haver alguém que eu admirava e respeitava, e que respondia de igual forma, transformou o aluno medíocre. As classificações melhoraram de forma notável. «O Futuro já não é o que era!», afirmava Yogi Berra, o famoso jogador de Baseball dos Yankees, conhecido por falar com o coração. Muitas vezes penso no poder da circunstância, de um encontro, no traçado da minha vida. Uma palavra de incentivo, ou outra atirada sem cuidado, marcam uma existência. Definitivamente. Poder enorme, tremenda responsabilidade a dos professores. A ideia que as crianças formam delas próprias depende em boa medida do que se passa dentro dos muros da Escola. Todos os dias avalio crianças com insucesso escolar. As razões são quase sempre múltiplas e complexas. O diagnóstico principal deve ser formulado: dislexia, perturbação da atenção, défice cognitivo. O primeiro mais o segundo em proporções variadas. Um pouco disto ou daquilo. Mas há também os círculos criados pelo sucesso e pelo insucesso, virtuosos ou viciosos, conforme a capacidade de quem educa para olhar as crianças e descobrir, mais além do espanto, que o seu olhar revela o potencial que a mudez das suas bocas esconde. E mudar-lhes o futuro.»


Nuno Lobo Antunes, nasceu em Lisboa a 10 de Maio 1954. Em 1977, licenciou-se em Medicina, pela Faculdade de Medicina de Lisboa.
Foi Assistente Hospitalar de Pediatria e Coordenador da Unidade de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Foi Membro da Comissão de Neurologia do “Children Oncology Group”.
Foi consultor de Neurologia Pediátrica para o Departamento de Neurologia e Pediatria do Memorial Hospital for Cancer and Allied Diseases e para o Presbyterian Hospital em Nova Iorque.
Foi ainda Professor Auxiliar de Neurologia e Pediatria na Cornell University Joan & Sanford I. Weill Medical College É actualmente Director Médico e Coordenador das áreas de Neurodesenvolvimento e Neurologia do CADIn, Consultor de Neuropediatria do Serviço de Pediatria Hospital Fernando da Fonseca e Consultor de Neurologia Pediátrica do IPO, em Lisboa.
Membro da American Academy of Neurology, da Child Neurology Society, da Children Cancer Group Tri-State Pediatric Neurology Society, da Society for Neurooncology, da Sociedade Portuguesa de Pediatria, da Sociedade Portuguesa de Neurologia e da Academia Ibero-Americana de Neurologia Pediátrica.








6 comentários:

  1. também li esse livro. gostei muito. e senti muito.
    um beijinho, querida ana.
    :-)

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  2. difícil não sentir muito com este livro.
    beijinho, Susana :)

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  3. Uma visão um pouco romântica, mas verdadeira para alguns. É certo que todos encontramos alguém na Escola que nos marcou. Lembra-se sempre de um ou outro professor por algo que nos disse ou nos fez sentir. Quer tenha sido bom quer tinha sido mau. Somos todos diferentes (e agora ainda são mais os miúdos actualmente) e não se encaixa facilmente no "tradicional". Tive uma professora de Matemática no secundário que fazia um autentico terrorismo com as chamadas ao quadro. Desfolhava a caderneta, até encontrar quem lhe apetecia. Era dura. Era exigente. Não me lembro se quer se ela alguma vez sorriu contudo foi a minha melhor professora. Aquela que me lembro. O método dela resultava em absoluto comigo e fez-me gostar sempre de matemática. Por uma única razão, porque dificultava e conseguia-me fazer pensar. Acredito que tenha "traumatizado" muito boa gente :)

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  4. Lá está, a diversidade é o encanto da vida :)
    (já me apeteceu estrangular alguns professores por vê-los ceifar a capacidade de sonhar de alguns alunos...não estrangulei. Ainda...:))

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  5. Chorei baba e ranho a ler esse livro do Nuno Lobo Antunes. Lembro-me de o ter no consultório, de ir lendo entre as consultas, e foram muitas as vezes que atendi pessoas com os olhos inchados de tanto chorar. É de uma humanidade incrível; é um homem com uma sensibilidade imensa, como escritor e como médico. Já Vergílio Ferreira poderia ter-se ficado pelo escritor, o recalcamento deveria tê-lo limitado à escrita.

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  6. também chorei baba e ranho, Teresa. é realmente de uma humanidade imensa. imagina se os professores lhe tivessem 'cortado as pernas'...

    tem um dia bom, Teresa.

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