terça-feira, 27 de setembro de 2016

afinal os dias estão a crescer, sem ti












dizem que os dias estão mais pequenos, mas não é verdade. os dias estão maiores desde que começaste a morrer-me. 
sobra-me o tempo, e o trabalho aparece feito mais cedo, pois já não me tropeças nos dedos nem perco tempo a rir para o telemóvel e a ouvir de vez em quando dizerem-me 'agora ris para o telemóvel?'. 
as refeições são rápidas. deixei de procurar os sabores que sei que se passeiam na tua boca, e as cores que tem a tua mesa. agora, o meu almoço é apenas o meu almoço, e o jantar é apenas a última refeição do dia. 
quando chove, já nem divido a minha alegria com a tua tristeza, sendo só um dia de aconchego e recolhimento, e, se está sol, como hoje, nem me lembro de me alegrar por te saber também, mais alegre. 
deixaste de me surpreender com musicas improváveis e aos domingos de manhã já não me envias pedaços de folhas que lês, nem poemas ficam agora escondidos atrás das minhas orelhas, nas linhas finas das veias que se desenham nas minhas pernas, nas sardas que me salpicam o peito. 
o meu corpo, deixou de ficar perlado de goticulas, depois do duche, para ficar apenas salpicado de água, o que me poupa também imenso tempo, pois é muito mais fácil secar-me, do que ficar a reparar nos reflexos da luz na minha pele molhada, fenómeno que eu nunca tinha notado, até tu mo fazeres ver. também aqui o dia cresce. 
deixaste de ser a minha última visão ao adormecer, e, no teu lugar, perco a noção do tempo com meditação e livros que se amontoam do lado direito da cama, mas o esquerdo continua livre. 
os meus olhos também sossegaram, cansados de carregar o mar , para pousá-lo no teu olhar. e até mesmo a pele, já nem se atarefa a trazer a frescura da maresia para depositar no teu corpo.
enfim, já nem me lembro de ti, não fosse de vez em quando um dos rapazes passar por mim a trautear aquela música que me enviaste e me faz recuar vidas e vidas, sem que eu perceba uma palavra do que é cantado.
começaste a morrer-me de mansinho, como os dias, que dizem que diminuem, mas que para mim, crescem, crescem sem ti. 












11 comentários:

  1. Ao ler o teu texto, ocorreu-me este poema que escrevi numa fase em que me sentia como tu (que passe depressa :).

    vi-o morrer devagarinho
    definhar no contínuo arrastar dos dias
    assisti-lhe ao último suspiro
    com um grito mudo preso
    na mágoa de não saber quebrar o

    fim

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  2. é o poema da morte lenta :)

    (não é assim tão mau, Carla. os dias grandes podem ser de muita utilidade :))

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  3. Uma vez utilizando exactamente o termo "morrer-me" alguém me corrigiu, dizendo que tal não fazia de todo sentido. Na altura pensei que só não faz sentido para quem nunca esqueceu devagar alguém :) alguém que se achava impossível se esquecer

    beijinhos ana, linda :)

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  4. É de mansinho. Como descolar um adesivo de uma ferida peluda :)
    Beijinhos, vizinha querida :)
    (e o trabalho?)

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  5. neste caso é juntar o útil ao desagradável :) e procurar preencher as horas que sobejam...
    (muito bom)

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  6. este caso é fazer do desagradável (palavra muito fraca aqui :)), útil (parece electrodoméstico:))

    obrigada, Manuel :)

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  7. Passamos uma vida a queixarmo-nos que não temos tempo e depois, devagarinho, vamo-nos apercebendo que o tempo cresce, que parece que está enorme. Acontece, mas apenas por algum tempo Ana, logo se encontram muitas outras coisas para o preencher. Ter tempo é bom :)

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