quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Agora é tudo higienicamente electrónico














- mas d. fernanda, a senhora não vai aceitar esse homem que tanto desejou e que agora a deseja a si?
- não, vizinha.
- mas então, d. fernanda?
- não posso. sabe que isto aqui dentro de mim não está como devia estar para aceitar o homem.
- mas não está como? está doente, d. fernanda?
- não, vizinha, não estou doente de corpo, nem de alma, sequer, pelo menos que me cause impedimento com o dito.
- mas então? pensou bem? olhe que a idade daqui para a frente não vai ajudar, a senhora me desculpe de falar assim, mas para novo ninguém vai...
- eu sei, e pensei também nisso. mas não posso. o meu coração ainda se passeia por impossibilidades. entende-me... não seria honesta...
- ó d. fernanda, ainda esse tal que a senhora nem conhece?...
- o que é que quer, vizinha... a vizinha gostava que alguém estivesse consigo e com o pensamento noutro lado?
- não, claro que não... mas essa impossibilidade, a senhora acha que será possível?...
- não vizinha, sei que não. mas que quer?... não poderia. nem mesmo com uma impossibilidade.
- mas, e quando isso passar?
- quando passar, passou. como tudo, vizinha. agora deixe-me descansar só um bocadinho, que aqui a sua casa é tão sossegada...
- claro, claro. a varanda é toda sua, se quiser. desculpe o lixo... olhe, vou acender uma velinha e trazer-lhe um chá.

a d. fernanda ficou na varanda. tão fora de horas para ela e para mim. bebericou calmamente o chá de gengibre, que na minha opinião é bom para tudo, fechou por algum tempo os olhos, depois ficou a olhar o rio, que segue o curso até ao mar, sempre tão só também, e lá no fundo, mistura a sua água doce com o sal do oceano.

e neste mês de agosto, que agosto é um bom mês para tomar decisões com os seus dias longos e vagarosos, a d. fernanda, uma mulher com origens no campo, pôs um ponto final na sua história, parece-me bem. com toda a lucidez, escolheu a honestidade. com toda a ilógica escolheu a impossibilidade. 

hoje, quando lia aqui neste mundo virtual que "Agora é tudo higienicamente electrónico. Sinto falta da humanidade do cuspo, da gota de suor a descer pela face, da saliva a saber a mar, das lágrimas verdadeiras e salgadas." parece-me que escrito pelo pedro paixão, ora quando li isto, lembrei-me que ainda não tinha aqui contado desta visita da minha vizinha.













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